Casa Grande & Senzala


"Portugal já está sujeito à concorrência de países de fora da Europa". 

"(...) os chineses que estão a entrar por aí dentro, os indianos a entrar por aí dentro e os países de Leste (quer dizer, do antigo bloco comunista) a fazer concorrência". 

"Está-me a fazer sinal por quê? Estão aí chineses? É mesmo bom para eles ouvirem porque eu não os quero aqui". 

Alberto João Jardim, governador da Ilha da Madeira, em discurso a uma plateia numa festa tradicional portuguesa realizada em seu território (página 14 do "domingo magazine", suplemento do jornal Correio da Manhã, edição nº 9542, de 10 de julho de 2005, domingo). 

Em dezembro de 2013, o número 99 da Revisa de História da Biblioteca Nacional publicou uma longa reportagem intitulada "Especial Apartheid", na qual abordava a luta de libertação dos povos africanos no pós-Guerra, considerando o colapso do regime racista da África do Sul como o capítulo mais recente da descolonização da África. 

Na matéria da Revista de História não faltou a menção a um personagem muito conhecido nos círculos intelectuais e acadêmicos da sociedade brasileira: Gilberto Freyre, o célebre autor de "Casa Grande & Senzala". Um escritor familiar não só aos historiadores, mas também aos antropólogos, aos sociólogos, aos literatos, aos cientistas políticos, enfim, a um sem-número de estudiosos brasileiros que têm no nosso país e no nosso povo seu mais importante objeto de estudo. 




                         Fonte: https://www.portalvaledocafe.com.br/hotelfazendaarvoredo/


Porém, engana-se quem pensa que, por ter lugar consagrado na historiografia brasileira, Gilberto Freyre tem sua imagem igualmente consagrada entre os historiadores. Acerca do famoso escritor, a Revista de História denunciou um aspecto desconhecido pela maioria do público: o apoio por ele manifestado ao colonialismo português quando começaram os movimentos de independência das colônias africanas. No texto "Discriminação em regime", na própria reportagem citada, lemos na página 46: 

"Diferente da imagem idílica construída por Gilberto Freyre a respeito da colonização portuguesa na África, grande parte das colônias lusitanas possuía uma legislação específica para a população negra. Durante todo o século XX (vinte) foram decretadas leis que regulavam o trabalho, o acesso a cargos públicos, a posse de terra, a assistência médica e o ensino aos negros". 

E em "O último colonialista", temos os seguintes trechos: 

"Agarrado às suas antigas teses na ONU, Gilberto Freyre ficou na contramão do processo de independência das nações africanas" (página 48). 

"Enquanto isso, fosse palestrando em Portugal ou em universidades nos Estados Unidos, fosse escrevendo sua coluna nos Diários Associados, Freyre continuava defendendo o colonialismo português cada vez mais vigorosamente" (página 51). 

Enquanto Gilberto Freyre atuava como advogado de Portugal, a colonização portuguesa fazia coisas horrorosas na África. É o que podemos ver nesse testemunho de Amílcar Cabral, fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde, e um dos líderes da luta de libertação: 

"E lá vieram os aviões bombardeando-nos (...). E vimos juntos as mesmas aldeias arruinadas, as mesmas populações em fuga perante as bombas, os mesmos mortos queimados pelo napalm, aquele mesmo guerrilheiro escaldado ao terceiro grau, mas mesmo assim vivo (...)". 

("História das Sociedades - Das Sociedades Modernas às Sociedades Atuais"; Rubim Santos Leão de Aquino, Francisco Jacques Moreira de Alvarenga, Denize de Azevedo Franco, Oscar Guilherme Pahl Campos Lopes; editora Ao Livro Técnico; página 334). 

Quem foi Gilberto Freyre? A maioria dos brasileiros ouviram falar dele por causa da sua obra mais famosa. E quando se fala em "Casa Grande & Senzala" a primeira ideia que ocorre às pessoas é a cantilena repetitiva do autor, desfiando elogios à mistura de raças que a colonização portuguesa promoveu no nosso país. E no livro não falta a bajulação às virtudes colonizadoras de Portugal. 

Aliás, podemos constatar em diversos escritores essa verdadeira veneração pela miscigenação nacional. Gilberto Freyre é um caso clássico. Mas ele não era o único. Jorge Amado também pensava da mesma forma. Do ponto de vista desses e de outros autores, a chamada "mistura de raças" que ocorreu no Brasil foi uma coisa boa, como que uma qualidade especial que distingue o nosso povo. 



                           Fonte: http://unespciencia.com.br/2017/08/01/preconceito-88/


Essa proposição, contudo, não tem fundamentos na realidade. 

Isso mesmo. Não tem. A tese defendida por esses autores simplesmente não é respaldada pela realidade da História do Brasil. Nesse ponto, me sinto na necessidade de esclarecer os meus leitores. Seria eu algum tipo de purista? Não, nada disso. Conforme consta no meu perfil do blog, sou um brasileiro nativo, de origem indígena; e moreno demais para abraçar uma causa desse tipo.

As objeções que levanto são de outra natureza. O que Gilberto Freyre, Jorge Amado, e outros intelectuais entusiastas da miscigenação esqueceram de dizer é que a nossa mistura de raças foi, acima de tudo, uma forma de colonialismo sexual. Um colonialismo abominável, o mais abominável de todos, muito mais ainda que o saque das nossas riquezas, pela carga de humilhação nele contida.

A Revista IstoÉ de 18/11/1998, nº 1520, da editora Três, publicou à página 132 um quadro com uma matéria intitulada "Os Frutos da Miscigenação". Talvez em função dos festejos dos 500 anos do Descobrimento, que já se aproximavam, eram comuns reportagens como essa na imprensa.

Os ditos frutos somos nós, os brasileiros. O artigo falava do geneticista Sérgio Danilo Pena, uma autoridade em genética de populações, e que na época coordenou uma pesquisa de mapeamento genético que analisou amostras colhidas de pessoas em vários pontos do país. O que se constatou é que mais de 80% dos brasileiros têm em seu código genético DNAs mitocondriais africanos ou indígenas herdados de alguma antepassada feminina da mãe, e mais de 90% têm cromossomos Y europeus herdados de algum antepassado masculino do pai.

E o que querem dizer todos esses números? Querem dizer o que já diz o senso comum: que a miscigenação na Colônia, no Império, e na República, foi, sobretudo, de mulheres negras e índias com brancos, e não de mulheres brancas com negros e índios. Foi isso que os autores citados acima se esqueceram de mencionar. A nossa "mistura de raças" não tem nada de positiva, muito menos de romântica, visto que foi uma forma de dominação racial e colonial.

A esse respeito, é oportuno destacar um trecho da página 9 da obra "Casa Grande & Senzala", do citado autor Gilberto Freyre (editora Record):

"Quanto à miscibilidade, nenhum povo colonizador, dos modernos, excedeu ou sequer igualou nesse ponto aos portugueses. Foi misturando-se gostosamente com mulheres de cor logo ao primeiro contato e multiplicando-se em filhos mestiços que uns milhares apenas de machos atrevidos conseguiram firmar-se na posse de terras vastíssimas e competir com povos grandes e numerosos na extensão de domínio colonial e na eficácia de ação colonizadora (...)". 




                               Fonte: https://www.saopaulo.com.br/o-brasil-de-rugendas/


Gostosamente... Deve ter sido gostosamente mesmo... Mas em que isso faz com que tenhamos laços com Portugal? O que temos com aquele país são os evidentes vínculos culturais que um país dominado tem com seu antigo dominador. A própria Península Ibérica foi por longo tempo ocupada pelos romanos, que lá deixaram uma forte marca cultural - daí portugueses e espanhóis serem hoje considerados latinos.

Todos sabemos que os portugueses, aqui chegados, estavam sempre bem dispostos a ter prazer com as mulheres dos vencidos; como, aliás, os conquistadores de todos os lugares e épocas. Mas quantas mulheres portuguesas, pergunto eu, se miscigenaram com negros e índios? Ronaldo Vainfas, historiador consagrado, mencionou esses casos em sua obra "Trópico dos Pecados", mas acredito que os casos reunidos por ele fossem exceções, e não a regra, o que é confirmado pelo mapeamento genético de 1998.

O ponto de vista defendido por uma parte da intelectualidade brasileira (parte minoritária, creio eu) de que o português tem alguma aptidão especial para conviver com outras raças e culturas não resiste a uma análise séria. Exemplo disso são as frases infelizes que abrem esse artigo, frases retiradas do discurso do governador da Ilha da Madeira. Cumpre lembrar que isso não foi dito por um pedreiro português encostado num balcão de botequim e embebedado de cerveja. Essa fala foi proferida abertamente por uma autoridade da República Portuguesa diante do público e da imprensa, autoridade que sabia perfeitamente que suas palavras estavam sendo gravadas, e que não teve a menor cerimônia em manifestar seu preconceito.

Da mesma forma, recordando o período colonial, a miscigenação ocorrida na época não pode ser invocada para alegar laços de família com Portugal, laços que nunca tivemos. Evidentemente que quando se tratava de sexo com mulheres negras e índias os portugueses foram notórios entusiastas da mestiçagem. Mas quantos deles se dispunham a ter um negro ou um indígena como genro ou como cunhado, casado com a sua filha ou com a sua irmã?



                           Fonte: http://blogueirasnegras.org/category/editorial/page/3/


Sim, é fato que esses muros raciais já estão sendo demolidos, felizmente. Contudo, é preciso lembrar que esse é um fenômeno da nossa época, não do passado. Ainda assim, observe-se que até hoje contam-se aos montes as mulheres brasileiras casadas com portugueses, mas quase não há mulheres portuguesas casadas com brasileiros negros ou pardos. Isso parece mostrar que a mentalidade colonialista de Alberto João Jardim não é um caso único em Portugal.

A História do Brasil é cheia de mitos; "construções", como dizem meus colegas historiadores. Um exemplo é o Descobrimento. Uma versão antiga dizia que a frota de Cabral foi desviada de sua rota por ventos, correntes marítimas, etc.; dessa forma, o Brasil teria sido descoberto por acaso. Essa tese está desacreditada há uns 50 anos. Na obra "História do Brasil", volume I, Bloch Editores (de 1976), lemos à página 14:

"Durante muito tempo a tese de que o Brasil havia sido descoberto por casualidade foi aceita sem contestação. Hoje, no entanto, sabe-se que a teoria do acaso - baseada nas calmarias, tempestades, correntes marítimas ou falta de marcos de conquista - não tem qualquer fundamento. Tendo como meta as Índias, admite-se que uma das ordens dadas a Cabral por Dom Manuel I teria sido a de verificar a existência de terras dentro dos limites portugueses traçados pelo Tratado de Tordesilhas. E, também, se possível, determinar seu valor. 

(...) De que Portugal, pelo menos, suspeitava da existência destas terras não há atualmente mais dúvida".  




Fonte: http://www.historia.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=4&evento=1


Hoje, com essa história de miscigenação, temos um mito parecido, mas que não resiste aos fatos. No que se refere à sociedade colonial, o fenômeno não merece os elogios que tem recebido de certos autores.

Então, vejamos... Os portugueses invadiram o Brasil, rapinaram as nossas riquezas, escravizaram negros e índios, engravidaram as negras e as índias... Sim, temos no sangue a marca do colonizador português. Temos. Mas, tendo o fato ocorrido como ocorreu, precisamos festejá-lo? Festejar o que, exatamente?

Houve, sem dúvida, situações em que a mestiçagem se deu em bases muito mais saudáveis. No Brasil, um exemplo foi a miscigenação de mulheres índias com negros no Quilombo dos Palmares (lembrando que as mulheres negras, diferente das brancas, não eram inatingíveis aos índios). Em Honduras, os zambos nasceram da mescla de indígenas com negros que sobreviveram ao naufrágio de um navio negreiro na costa do país em 1641 (no Brasil seriam os chamados cafuzos). Da mesma forma, precisamos aceitar como viável a existência de vários povos ao redor do mundo que surgiram de uma miscigenação saudável, feita com pessoas de ambos os sexos, em ambos os lados.

Mas afinal o que levou Gilberto Freyre a dizer essas tolices, e, além de dizê-las, publicá-las? Ao que parece, "Casa Grande & Senzala" surgiu como uma resposta a teses racistas que circulavam no século XIX (dezenove), e que ainda encontravam grande aceitação no início do século XX (vinte), época do lançamento do livro. Em 1933, quando a obra foi publicada, o Partido Nazista chegava ao poder na Alemanha. Anos antes, em 1923, havia ocorrido uma tentativa de golpe naquele país. Entre os líderes do golpe se encontrava Adolf Hitler.

Observe-se que o movimento nazista possuía ramificações em diversos países da Europa (os nazistas tinham forte presença na Áustria, por exemplo). Indivíduo letrado que era, é muito provável, quase certo até, que Freyre tenha acompanhado a ascensão do nazismo pelos jornais.

O nazismo tinha sua origem em "teorias" que haviam ganhado força no século XIX. As proposições desses "teóricos" diziam, entre outras coisas, que o clima quente e a mistura racial dificultavam o desenvolvimento econômico, na medida em que causavam uma certa indolência nos habitantes dos trópicos.




                        Fonte: https://avoyager.net/historia/guia-antropologicamente-incorreto/
                                             

Citando o exemplo do Brasil, alguns dos viajantes europeus que visitaram Salvador, Rio de Janeiro e outras cidades, ao encontrarem pessoas sonolentas em armazéns e casas comerciais, não hesitaram em assinar embaixo dessas teses (o mais provável é que tenham visto pessoas cansadas em função de noites mal dormidas por causa do calor, numa época em que não havia ar-condicionado). Bastaram dois neurônios razoavelmente funcionais para completar o raciocínio: "clima-quente-é-igual-a-povo-preguiçoso". Pronto! Estava decretada a preguiça nacional.

A tese, furada como queijo suíço, não explica toda a pobreza da Irlanda do século XIX, onde uma epidemia de fome deixou um milhão de mortos. Na verdade, se a memória desses viajantes não fosse tão curta, eles teriam duvidado dessas teses relembrando exemplos que viram na própria Europa. Apenas alguns anos antes a crença de que os europeus têm mais afinco no trabalho do que os outros povos teria sido claramente desmentida por todo o luxo e por todo o ócio da Corte de Versalhes, na França do século XVIII (dezoito).


A Corte dos Glutões 

Na obra "Estudos de História Moderna e Contemporânea" (Atual Editora) o historiador Raymundo Carlos Bandeira Campos traz um retrato eloquente do que era a Corte de Versalhes. Para usar a linguagem mais leve possível, os nobres de Versalhes eram uma corja de inúteis.

No palácio de Versalhes encontravam-se elementos das mais importantes famílias da nobreza da França, algumas das quais, em dificuldades financeiras, tinham na corte uma forma de manter um padrão de vida elevadíssimo (viviam de aparência, como se diz). Em meio a uma série de complexos rituais de etiqueta essa nobreza desfrutava da chamada "doçura de viver". Suas, digamos, "ocupações": jogos, bailes, passeios, caçadas e intrigas, tudo isso em meio a um luxo poucas vezes encontrado na História.

Servidos por vasta criadagem, os nobres franceses dispunham ainda de numerosas benesses concedidas pela Coroa: deixavam de pagar vários impostos, recebiam terras, dinheiro e cargos públicos. Além disso, nas terras que ganhavam, podiam dispor dos camponeses como servos e exigir-lhes o pagamento de taxas. Esses nobres não exerciam nenhuma atividade produtiva, e caso cometessem algum crime tinham direito a tribunais próprios, administrados pela chamada nobreza de toga.

Essa nobreza voraz e parasitária, aferrada a seus privilégios adquiridos, sempre exigindo mais luxo e mais conforto, representava um peso cada vez maior no orçamento da nação, levando as finanças públicas à beira da bancarrota. Na página 143 do livro já citado o autor informa que os gastos com as 4 mil pessoas da Corte de Versalhes chegavam a 36 milhões de libras, três vezes mais que a Assistência Social e a Educação, que só recebiam 12 milhões de libras para atender os 20 milhões de camponeses da França. Uma corte de desocupados que vivia no ócio, uma comilança de dinheiro sem freios e sem controle, e só a Revolução Francesa poria fim a essa situação.

Preguiçosos, nós? Ora, se a preguiça fosse um mal exclusivo dos trópicos, um fenômeno como a Corte de Versalhes não deveria ter existido. Nem se pode afirmar, até mesmo com base no que já se sabia na própria época desses viajantes estrangeiros, que os europeus sejam mais trabalhadores do que os outros povos. Mesmo assim, continuou-se teimosamente vendendo a ideia do desapego do nosso povo pelo batente.

No livro "História do Brasil" (Atual Editora), à página 36, Raymundo Carlos Bandeira Campos faz uma outra menção que o autor do blog julga oportuno transcrever:

"(...) Frequentemente, no seu território de origem, o negro mostrava grandes habilidades no tocante a agricultura, mineração e mesmo manufatura. Escravo no Novo Mundo, foi a força produtiva que derrubou florestas, explorou minas, tornou a terra passível de ser cultivada; plantou, colheu, transportou produtos como açúcar, tabaco, cacau e café, que tiveram os seus custos baixados e passaram a ser largamente consumidos, graças a essa mão de obra barata". 

As mãos negras construíram o Brasil.



Fonte:https://almapreta.com/editorias/realidade/entenda-as-razoes-historicas-do-porque-negros-ganham-menos-do-que-brancos


E acrescente-se: o Brasil não seria nem a metade do que é sem os nossos negros.

Bom, pode-se dizer que os preguiçosos que havia por aqui estavam no topo da pirâmide social: eram os fazendeiros do açúcar e do café, que viviam parasitariamente às custas dos seus escravos submetidos a condições desumanas de trabalho.

"Casa Grande & Senzala" veio como uma resposta a esse estado de coisas. Gilberto Freyre, contudo, quis combater teses erradas com argumentos mais errados ainda. Tentou se opor à doutrina nazista, mas não viu, ou não quis ver, os crimes de lesa-Humanidade cometidos pelos invasores portugueses na África.

À ideia de pureza racial defendida pelo nazismo, Freyre contrapôs uma outra, a de que a miscigenação é uma coisa boa sim. O que faltou dizer: depende da miscigenação. Tentemos imaginar um negro ou um índio daquela época, escravo ou liberto, tanto fazia: a mulher branca, inalcançável, inatingível... A união carnal sonhada mas jamais realizada. A sociedade colonial nunca foi o paraíso idealizado por Gilberto Freyre, a não ser no mundo de fantasia criado por sua imaginação de escritor. Ele não viu a realidade. Viu o que queria ver.


A Capitania de Goiás 

Quando se fala em estudos históricos, podemos constatar uma certa contaminação da historiografia brasileira por um discurso pró-lusitano. Já no século XVI (dezesseis), o poeta quinhentista Luís de Camões louvava os conquistadores lusos, "a quem Netuno e Marte obedeceram". Como se sabe, Netuno era o deus romano do mar; e Marte, o deus da guerra. As viagens náuticas deram certo, como deram certo as operações bélicas; e os vencedores tinham "direito" às terras, às riquezas, e às mulheres dos vencidos. No dizer do intelectual mineiro Afonso Arinos, eles, os portugueses, eram "muito machos" para resistirem a tantas índias e negras seminuas. Conseguiam tudo o que queriam, sempre.

Gilberto Freyre retratava o Brasil como um paraíso tropical, repleto de haréns à disposição dos seus novos donos. A indústria do turismo herdou esse olhar freyriano; daí vender o nosso país como mercado do turismo de sexo. Eu comparo a situação a uma toxina que age no organismo de um drogado, bloqueando a sua percepção do mundo real. Esse triunfalismo pró-lusitano infeccionou de tal forma a historiografia brasileira que rompeu os seus laços com a realidade.

Quando descreviam a formação da sociedade colonial, "o mundo que o português criou", esses autores pintavam os colonizadores com um heroísmo que pouco tem a ver com os fatos. Vários desses escritores exageravam muito, mentiam até - esquecendo, ou fingindo esquecer, que a História é uma ciência, e como ciência deve ser tratada. Não pode ser moldada como uma obra de literatura.




"Terra Brasilis", mapa confeccionado pelo cartógrafo português Lopo Homem em 1515 (fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Atlas_Miller). 


P'ra começar, os marujos portugueses não embarcavam nos navios só por causa das mulheres morenas dos trópicos, mas também para fugir da miséria de Portugal. A riqueza quase toda do país estava concentrada no topo da sociedade, enquanto que a maioria da população era absolutamente miserável (como se vê, o Brasil teve a quem puxar...). Os lucros auferidos com as especiarias, e depois com o pau-brasil e a cana-de-açúcar, tinham os mesmos destinatários de costume: alto clero, nobreza e burguesia. O povo vivia com fome. Se as mulheres do Brasil, África e Índia tiveram algum peso na decisão de enfrentar o oceano, a fuga de uma vida sem futuro foi uma motivação tão importante quanto.

Uma vida dura esperava os homens do mar. Isso, claro, quando dava tudo certo. E às vezes não dava. Quem conhece o estado do Maranhão, mesmo que pela tevê ou pela Internet, sabe que o lugar é lindíssimo. Ninguém questiona que se trata de um verdadeiro paraíso. Paraíso fatal: as águas mais perigosas da costa brasileira são as do Maranhão. No litoral maranhense a Natureza preparou uma armadilha para os navegantes: o Recife de Manuel Luís, um dos maiores cemitérios de navios do mundo.

A 83 quilômetros das praias brasileiras, o oceano deveria ser muito profundo. Mas não é. O que existe no local é uma espécie de cadeia montanhosa submersa, com 4,5 quilômetros de comprimento por 150 metros de largura, formando fileiras de paredões de pedra, cujos picos estão à flor d'água, pouco abaixo da superfície. Não podem ser vistos por quem está num barco, mas são perfeitos para abrir um buraco em qualquer embarcação.

O Manuel Luís é tão perigoso que ganhou o apelido de "Triângulo das Bermudas brasileiro":

https://pt.wikipedia.org/wiki/Parque_Estadual_Marinho_do_Parcel_de_Manuel_Lu%C3%ADs

Fortes correntes marinhas, grandes variações de marés e inumeráveis bancos de areia, além dos cinturões de recifes de corais, fizeram dele uma das áreas mais perigosas do mundo para a navegação (mesma fonte).

Entre 1536 e 1983 afundaram lá centenas de embarcações. O lugar é túmulo de cerca de 250 navios, cinco vezes mais que o registrado nas Ilhas Bermudas. A grande maioria são navios ocidentais, mas alguns brasileiros também.

Os portugueses tiveram a "honra" de serem os primeiros fregueses do recife. Já em 1536 a frota do capitão Aires da Cunha encontrava aí o seu destino. Dez embarcações, com exatos 1030 marinheiros e soldados de infantaria e cavalaria, naufragaram no local. A maioria deles morreram, inclusive o comandante (Enciclopédia Mirador, volume 13, página 7230).

Em 1539, chegava ao litoral maranhense outra expedição, comandada pelo fidalgo lusitano Luís de Melo da Silva. Naufragaram de novo. Se dentre os homens a bordo havia aqueles ávidos pelas "mulheres de cor", como queriam Afonso Arinos e Gilberto Freyre, o destino que eles tiveram não foi a morenice das brasileiras nativas, mas sim o fundo do mar e o navio como sepultura. É, Netuno não obedecia sempre...




                               Fonte: https://www.1zoom.me/pt/wallpaper/471974/z6857.3/


Quando Gilberto Freyre, Afonso Arinos e outros autores glorificam os colonizadores lusos por terem eles exercido a sua virilidade com as mulheres índias e negras, devemos lembrar que esse universo rural, com a "confraternização" sexual entre a senzala e a casa grande, estava circunscrito aos territórios controlados pelos invasores. É aqui que entra a falta de conhecimento do público em História.

Quem vê o mapa do Brasil hoje pensa que desde 1500 o país foi, todo ele, português. Não foi bem assim. Até 1600, um século após o Descobrimento, "o mundo que o português criou" se limitava a uma faixa ao longo do litoral, onde se encontravam os canaviais e os engenhos de cana-de-açúcar. O interior do território só foi ocupado de fato a partir do século XVIII (dezoito), com os ciclos do gado e da mineração. Vejam:



          Fonte: http://histgeo6.blogspot.com/2017/10/geografia-do-imperio-portugues.html


Diferente do que querem os pró-lusitanos, a conquista não foi fácil, nem simples, nem rápida. Na Enciclopédia Mirador (volume 16, página 8580), lemos o seguinte trecho sobre a colonização da capitania da Paraíba:

"Os conflitos se sucediam e o certo é que, em mais de setenta anos de presença do português no Brasil, a colonização não dera um passo além (da Ilha) de Itamaracá". 

Fora do mundo de fantasia que Gilberto Freyre construiu p'ra si mesmo a realidade foi mais complicada. Por vezes, essa satisfação sexual podia trazer problemas. Em 1573, Diogo Dias, senhor de engenho e mercador de Pernambuco, teve toda a família trucidada e o engenho destruído por causa do rapto de uma índia. Os conquistadores portugueses, "muito machos" - no dizer elogioso de Afonso Arinos - não conseguiam tudo o que queriam: em 1575, os índios potiguaras derrotaram a expedição do ouvidor Fernão da Silva. Bom, às vezes Marte obedecia, às vezes não...

Os potiguaras só foram vencidos em 1599, após terem sido dizimados por uma epidemia de varíola. O micróbio "limpou o terreno" e facilitou a conquista. O que se viu depois foi uma desonrosa carnificina, com destruição e massacre completo de aldeias inteiras. 

Chegamos a uma terceira divindade romana mencionada por Camões em sua obra: Vênus, a deusa do erotismo e do amor. Em "Casa Grande & Senzala", Gilberto Freyre fala muito em "coitos danados". A pergunta que faltou fazer: esses coitos danados de "varões portugueses" com as mulheres dos índios e negros vencidos se deu sempre, em todo lugar, tal como é retratado no livro?

Na prática, as relações sexuais podem ser divididas em duas categorias: consensuais e não-consensuais. Em toda sociedade há uma certa quantidade de estupros, mas estes produzem uma porcentagem pequena do total de nascimentos em uma dada população. O efeito é ainda mais acentuado lembrando que os abortamentos e infanticídios são substancialmente menores quando a gravidez é de uma filha menina, pois nesse caso não há a identificação do fruto do estupro com o estuprador.

Essa porcentagem pequena pode ser visualizada facilmente na nossa própria época: a vasta maioria das pessoas que não têm o nome do pai na certidão de nascimento não possuem o sobrenome paterno porque não foram reconhecidas, e não porque suas mães foram violentadas.

O livro de Gilberto Freyre não é de todo mentiroso. Não nesse ponto, pelo menos. Muitas relações no Brasil Colônia foram consensuais sim. Mas ora... Se os portugueses queimavam as aldeias, matavam, punham os índios a ferros e os escravizavam, como é possível que as índias copulassem com eles?

Uma das explicações estava na prática de se aliar a uma tribo para combater outra. Não raro essas violências eram cometidas contra outros grupos, outras etnias - por vezes, povos inimigos da tribo dela.

Mesmo ainda quando o povo dela era a vítima, não era incomum que o interessismo falasse mais alto, impondo-se a quaisquer sentimentos de solidariedade étnica. Mais uma vez traçando um paralelo com o Brasil de hoje, observem as brasileiras cata-gringo. Se os brasileiros são presos, algemados e deportados dos EUA, como se explica que tantas brasileiras queiram se casar com gringos? Uma das razões é que os deportados são pessoas que elas não conhecem - não são seus parentes, nem seus amigos, não fazem parte do círculo de relações pessoais delas. Ademais, o interesse no casamento com um estrangeiro endinheirado se impõe com tanta força que essa situação acaba sendo naturalizada como um "direito do vencedor".

Mas houve um lugar onde o cenário de "Casa Grande & Senzala" não funcionou: a capitania de Goiás. Lá, a "caça ao índio" para a escravidão, a exploração e os maus-tratos causaram ressentimentos que produziram um fenômeno único no Brasil das fazendas e das plantações: as brasileiras nativas se solidarizaram com o seu próprio povo. 




              Goiás (fonte: https://www.emaisgoias.com.br/visitantes-da-chapada-dos-veadeiros-terao-que-pagar-ingressos-que-variam-de-r-3-a-r-34/). 


O volume 10 da Enciclopédia Mirador (página 5366) é uma das fontes que falam a respeito: a população cabocla era inexpressiva, não devido a restrições legais (visto que restrições desse tipo nunca foram respeitadas em lugar nenhum), mas em função dos ressentimentos gerados pela escravização do nativo. Só no século XIX (dezenove), com a Independência, é que a situação começou a mudar.

A Capitania de Goiás foi para os "varões lusos" toda a resistência que eles não encontraram no resto do país: além das tragédias náuticas e das derrotas bélicas, Goiás foi o único lugar onde eles sofreram uma derrota genética, onde o colonialismo sexual de "Casa Grande & Senzala" não funcionou. Lá, Vênus não lhes obedeceu.


Conclusão 

Muito mais do que a rapinagem das nossas riquezas naturais - o pau-brasil, o ouro, os diamantes, etc. - essa miscigenação, longe de ser sadia, foi o que a colonização portuguesa teve de pior, por ser uma espoliação muito mais degradante do que o saque dos nossos bens materiais. Naquele tempo, o Brasil era visto como um Jardim do Éden, e, assim como o Éden bíblico, uma terra sem pecado.

Naquele tempo como hoje, diga-se. Basta ver, nos nossos dias, no século XXI (vinte e um), a invasão dos novos colonizadores - portugueses, sim, mas também americanos, espanhóis, franceses, italianos, alemães - que a cada carnaval e réveillon se atiram sobre o nosso país como vespas, à procura de programas com mulheres negras, mulatas e morenas.

O ramo hoteleiro acaba sendo cúmplice dessa forma de turismo sexual, por ser beneficiário do esquema. Contudo, algo que o público não sabe é que a maioria dos hóspedes desses hotéis, em torno de 70%, são brasileiros de outros estados. Os turistas estrangeiros representam apenas uns 30% da ocupação.

Um pedido que eu gostaria de fazer ao leitor... Quando viajar, se constatar nesse hotel turistas estrangeiros - muito fáceis de reconhecer - acompanhados de suas prostitutas brasileiras, evite se hospedar lá novamente. Estou abertamente recomendando um boicote aos hotéis que colaboram com o turismo sexual.

Não se esqueça: 70% do faturamento desse hotel depende de você.

Outra recomendação que eu gostaria de fazer. Anos atrás, a Adidas, empresa alemã de produtos têxteis, teve a péssima ideia de vender camisas da copa do mundo oferecendo o Brasil como destino de turismo sexual:

https://www.terra.com.br/esportes/futebol/copa-2014/adidas-suspende-venda-de-camisetas-da-copa-que-indignaram-brasileiros,054bebd04c964410VgnCLD2000000ec6eb0aRCRD.html

Todo o mal que a Alemanha já fez à Humanidade não foi suficiente? Ainda precisavam nos impor mais essa humilhação? Brasileiros: boicotem a Adidas. A Alemanha não é mais a potência colonial de outrora. É, quando muito, uma nação insolente, prepotente, petulante, sonhando com o poderio colonial que não mais possui, e que precisa de uma lição para cair na realidade. 

O azeite português eu já evito faz tempo... Prefiro o nacional.

Finalmente, é irresistível a comparação entre a nossa época e os tempos passados. No Brasil da cana-de-açúcar e do café, enquanto os escravos que trabalhavam para o senhor estavam na senzala, sujeitados, acorrentados, na casa grande o dito senhor se miscigenava ("gostosamente", como queria Freyre) com sua escrava negra. Hoje, nas áreas de serviço dos hotéis, os empregados trabalham para prover o conforto do hóspede, enquanto que lá em cima, na suíte, a prostituta brasileira proporciona ao turista gringo o prazer que ele veio buscar no nosso país tropical. Casa grande e senzala.

Agradeço muito pela atenção de todos. Um abraço, gente; nos vemos na próxima.

O Tamoio.


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"Mulata Exportação": 
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