O Dia do Caboclo

"Era um sonho dantesco... O tombadilho 

Que das luzernas avermelha o brilho, 

Em sangue a se banhar. 

Tinir de ferros... estalar de açoite... 

Legiões de homens negros como a noite, 

Horrendos a dançar..." 


"O Navio Negreiro", por Castro Alves ("História da Sociedade Brasileira"; Francisco Alencar, Lucia Carpi, Marcus Venício Ribeiro; Editora Ao Livro Técnico, página 175). 


Olá a todos. 


Quando se fala em dias cívicos, certas datas são lembradas de pronto pelo cidadão dito comum. O Dia do Índio, 19 de abril, e a Lei Áurea, 13 de maio, são dois dos melhores exemplos. São datas frequentemente mencionadas em jornais e revistas, e celebradas por escolas públicas e movimentos sociais como marcos de luta e resistência - sinais indisfarçáveis da força com que o tempo imprimiu esses símbolos na memória coletiva. Mas... vocês sabiam que também existe um dia do caboclo? 


Pois existe. A maioria das pessoas não sabem, mas existe um dia do caboclo sim. É 24 de junho. Trata-se de um ilustre desconhecido - ilustre por ser uma data importante para a nossa nacionalidade, mas desconhecido do grande público. Ofuscado pelo brilho dos seus primos famosos, o 19 de abril e o 13 de maio. 


Mas o que é ser um caboclo, exatamente? Podemos dizer que, mesmo sendo um brasílico, um brasileiro nativo, não é o primeiro brasileiro (o indígena), embora tenha laços de sangue com ele. Resumindo, é o genuíno vira-lata, no dizer magistral de Nelson Rodrigues.  


Muito prazer, eu sou um caboclo. 


Raízes do Brasil: índios, negros, brancos, caboclos, mulatos, cafuzos... A diversidade do nosso povo mostra a aceitação entusiasmada que a mestiçagem encontrou nas nossas terras tropicais. Esse gosto pela miscigenação eu também tenho: sou completamente apaixonado por mulheres negras e mulatas. Paixão essa que nem sempre frutifica em alegria. 


Como no tempo da casa-grande e da senzala, o Brasil de hoje ainda é visto como um paraíso do sexo. Confesso que vejo com certo desgosto a preferência, muito difundida entre as brasileiras (inclusive negras e mulatas), pelos turistas gringos que a cada ano vêm ao nosso país para se satisfazerem com as nossas mulheres. 


Muitas delas, senão a maioria, demonstram o mais solene desprezo pelo homem brasileiro. Nesse desprezo, o raciocínio delas se assemelha muito a uma balança. Sabem aquelas balanças antigas com dois pratos, em que se punham valores de cada lado p'ra ver quem pesava mais? Bom, o pensamento delas é mais ou menos assim: "o-brasileiro-ganha-pouco-o-gringo-ganha-muito-então-o-gringo-vale-mais-que-o-brasileiro". Ponto. 

(Imagem: https://br.freepik.com/fotos-premium/balanca-antiga_4238134.htm).  

É, mas p'ra ser uma pesagem justa tem que entrar mais coisas nessa balança aí... O melhor modo de explicar do que eu estou falando é com uma imagem alegórica. Tentem imaginar dois atletas correndo numa pista de atletismo. Um corre livre; o outro, tenta correr carregando uma mochila cheia de tijolos. Só p'ra começar, o brasileiro encontra um mercado de trabalho que lhe faz as seguintes exigências: 


1º A empresa espera que o cidadão traga experiência da encarnação passada, pois a obrigação dele é já nascer sabendo;

2º O pretendente à vaga deve também ser dotado de poderes mediúnicos, uma vez que ele tem que adivinhar o que a psicóloga quer que ele diga na entrevista; 

3º Além de mediunidade e lembrança de vidas passadas, o candidato ao emprego deve também ter conexões internas dentro da empresa, que lhe garantam a indispensável indicação à vaga pretendida. Não tem? "Deixe seu currículo que assim que surgir uma vaga nós entramos em contato". 


O brasileiro tem que enfrentar obstáculos que os gringos nem conhecem. Outro ponto a considerar é que a maioria das moedas ocidentais, senão todas, são muito mais fortes do que o real, que é o dinheiro que nós temos - quando temos. O que não devia causar surpresa a ninguém, dado que o capitalismo ocidental vem do século XIII (treze), pelo menos, o que lhe dá uma vantagem de 600 anos em relação ao nosso. Acrescente-se: eles ainda foram favorecidos pelas riquezas roubadas do Brasil em séculos de colonização. 




Aqui precisamos fazer uma pausa para uma explicação de História (sou historiador). Quando lemos sobre os modos de produção na escola, com frequência temos a ideia de uma coisa toda arrumadinha, como uma fila de tijolinhos um do lado do outro: feudalismo-mercantilismo-capitalismo, etc. Não é bem assim. O fenômeno histórico é muito mais complexo do que isso. O que esses capítulos mostram é o modo de produção predominante em cada período. Normalmente, essas doutrinas econômicas se sobrepuseram, convivendo uma com a outra. Quando um modo mais antigo se encontrava em declínio, outro mais novo já estava em ascensão, até que em dado momento terminasse por ultrapassá-lo; a partir daí, entrava-se numa nova fase. Por exemplo, embora o feudalismo seja associado à Idade Média, ainda havia traços feudais na Rússia do século XIX (dezenove). 


A rigor, o capitalismo ocidental vem (pelo menos) desde a Liga Hanseática. Fundada em 1293, tratava-se de uma união comercial formada por oitenta cidades alemãs sob a liderança de Lübeck (conforme Enciclopédia Mirador, volume 11, página 5660; e "História Geral" volume 1 - História Antiga e Medieval - 1º grau, Francisco de Assis Silva, Editora Moderna, páginas 138 e 139). O modo de produção capitalista só surgiu entre nós no século XIX, com o Visconde de Mauá. Além de muito mais antigo, o capitalismo deles é maduro e inclusivo, enquanto que o nosso capitalismo é aquele que todos sabemos. 


Um outro fator, muito importante, que favoreceu o desenvolvimento do capitalismo ocidental: o comércio de gente. Vejamos o que diz o historiador Raymundo Carlos Bandeira Campos ("História do Brasil", Atual Editora, página 36): 


"As burguesias e monarquias mercantilistas de países como Portugal, Holanda, Inglaterra e França, acumularam, com o tráfico negreiro, enormes riquezas que fomentaram o desenvolvimento capitalista na Europa. 

(...) Com a chegada dos europeus, a partir do século XV (quinze), o escravismo e o tráfico desenvolveram-se cada vez mais na costa ocidental da África".  





"História do Brasil", Bloch Editores, volume II, página 482: 


"Foi em Portugal que mais se desenvolveu o tráfico negreiro - já que este país mantinha o domínio exclusivo da África colonial. Durante muitos anos, porém, o tráfico negreiro foi também próspero na Espanha, representando a principal fonte de renda do país. Por intermédio dos asientos a coroa espanhola concedia a determinados súditos o direito exclusivo de fornecer negros escravos às suas possessões de ultramar. O negócio era tão vantajoso que muitos soberanos estrangeiros faziam tudo para obter os asientos, ou seja, tratados ou contratos de monopólio comercial. E por dois séculos - de 1517 a 1743 - holandeses, espanhóis, franceses, portugueses e ingleses gozaram sucessivamente deste monopólio". 


Na página 229 de "Estudos de História Moderna e Contemporânea" (Atual Editora), o mesmo autor Raymundo Carlos Bandeira Campos, falando da colonização do Congo, na África, explica de onde veio a riqueza dos belgas: 


"Seguiu-se então uma das mais terríveis páginas da exploração colonialista que o mundo já conheceu. A Associação (Associação Internacional do Alto Congo, presidida pelo rei da Bélgica, Leopoldo I) escravizou alguns milhões de negros, obrigados a trabalhar nas minas e plantações sob as piores condições imagináveis. Populações inteiras desapareceram, vítimas da fome, das doenças, dos trabalhos forçados ou de massacres coletivos, num processo conhecido na época como as 'Congo atrocities' " (atrocidades no Congo).  




"Esquartejamentos, mutilação, escravidão, chibata, sequestro de crianças, destruição de vilas, assassinatos em massa e trabalho infantil eram alguns dos traços do regime de trabalho implantado por Leopoldo. Até para a época, a brutalidade usada no Congo era tamanha que só podia ser comparada com a colonização alemã, exemplo de desumanidade na época". Na imagem, negros congoleses que tiveram suas mãos cortadas pelos invasores belgas. 

Meus ancestrais índios também foram escravizados. Sem nenhum menosprezo pelo sofrimento deles, penso que a escravidão negra foi pior, de certa forma. O índio ainda pôde ficar no Brasil - e todos sabem que ser compulsoriamente retirado da sua própria terra é uma pena terrível para qualquer indígena. O negro não pôde ficar na África. Ao fardo da escravidão, por si só já bastante pesado, foi acrescentado mais outro: o desterro, o exílio da terra natal. 


Ontem a Serra Leoa, 

A guerra, a caça ao leão, 

O sono dormido à toa 

Sob as tendas d'amplidão!

Hoje... o porão negro, fundo, 

Infecto, apertado, imundo, 

Tendo a peste por jaguar... 

E o sono sempre cortado 

Pelo arranco de um finado, 

E o baque de um corpo ao mar... 



Sou um caboclo, e muito me orgulho disso. Também sou um cara pobre, não tenho vergonha de dizer. Tenho plena consciência da distância que me separa dos turistas gringos. É claro que eles são muito mais "bem-sucedidos" do que eu. Nem poderia ser diferente: eles enriqueceram comerciando os antepassados delas. 


P'ra mim, que amo tanto as mulheres afro, causa bastante desapontamento vê-las privilegiando os gringos em suas escolhas. É, eles têm mais dinheiro do que eu sim, muito mais. O que faltou dizer: é dinheiro sujo de sangue. É o sangue dos bisavós delas que está nesse dinheiro. 


Eu separei um vídeo p'ra mostrar como os gringos enriqueceram. 24 de junho é o Dia do Caboclo. Parabéns p'ra mim. 



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